Já é uma realidade há algum tempo a importância das políticas de conformidade no âmbito privado. Desenvolvida com maior vigor a partir do segmento financeiro, a autorregulação se projetou como instrumento natural de segurança e maior confiabilidade para os stakeholders e como uma resposta ao implacável crivo exercido por agentes reguladores e pelo mercado de capitais.
A simbiose entre dimensões pública e privada favoreceria, com o tempo, a assimilação pela administração de boas práticas implementadas por particulares. Gradativamente, o controle preventivo interno clássico, propiciado pela tutela (supervisão ministerial), pela hierarquia e pelo poder disciplinar exigiriam maior sofisticação: a eficiência como princípio constitucional não haveria de subordinar somente a atividade fim administrativa, mas também atividades-meio, interna corporis, intra muros.
Marco normativo que pode ser considerado inicial dessa caminhada, o Decreto 5.678/2006 internalizou a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, pautando-se nos “princípios de devida gestão dos assuntos e dos bens públicos, equidade, responsabilidade e igualdade perante a lei, assim como a necessidade de salvaguardar a integridade e fomentar uma cultura de rechaço à corrupção”. Dali em diante, a personalidade jurídica de direito privado favoreceu que essa contaminação positiva das políticas de conformidade se iniciasse pela administração indireta.
A edição do Guia de Implantação de Programa de Integridade em Empresas Estatais pela Controladoria-Geral da União, em 2015, representaria um importante avanço, imediatamente seguido pela Lei 13.303/2016 (Estatuto das Estatais), da qual merecem ser colhidos o artigo 8º, VII, prevendo políticas de transações obedientes à conformidade; o artigo 9º, parágrafo 1º, dispondo sobre a necessária edição de um Código de Conduta e Integridade, com instâncias, canais, sanções e treinamentos; e o artigo 10, versando sobre a obrigatoriedade de criação de um comitê de conformidade do processo de indicação e avaliação de membros para o Conselho de Administração.
Ainda no âmbito da administração indireta, mas passando à personalidade jurídica de direito público, as agências reguladoras, mercê de sua interação frequente com segmentos privados, seriam também influenciadas, convindo o destaque do artigo 3º, parágrafo 3º, da Lei 13.848/2019, a impor a adoção de programa de integridade por aquelas entidades.
Na administração direta, de sua vez, em que pese todo um microssistema de controle já ser formado pelas leis 4.717/1965, 8.429/1992, 8.666/1993, 12.527/2011 e 12.813/2013; pela Lei Complementar 101/2000; e pelos decretos 1.171/1994 e 5.480/2005, foi igualmente percebida uma carência, do ponto de vista da governança, de uma estruturação mais sólida nos moldes de políticas de conformidade e de integridade.
Novamente a CGU empreendeu iniciativa louvável ao editar, em 2013, o Manual de Integridade Pública e Fortalecimento da Gestão Orientações para o Gestor Municipal. Posteriormente, em 2015, perseverando na proatividade institucional, o órgão produziria o Guia de Integridade Pública — alcançando também autarquias e fundações —, com o escopo de “chamar a atenção dos gestores públicos sobre questões que devem ser discutidas e implementadas com o intuito de mitigar a ocorrência de corrupção e desvios éticos no âmbito de seu órgão ou entidade.”
Em 2017, sobreviria o Decreto 9.203/2017, dispondo sobre a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Da referida norma constou, em seu artigo 19, a obrigatoriedade de instituição, por órgãos e entidades, de programa de integridade com o “objetivo de promover a adoção de medidas e ações institucionais destinadas à prevenção, à detecção, à punição e à remediação de fraudes e atos de corrupção”, observando como eixos o comprometimento e o apoio da alta administração; existência de unidade responsável pela implementação no órgão ou na entidade; análise, avaliação e gestão dos riscos associados ao tema da integridade; e monitoramento contínuo dos atributos do programa de integridade.
Cumprindo com a exigência prevista no artigo 20 daquele mesmo decreto, a CGU elaboraria os Guias Práticos (I) de Implementação de Programa de Integridade Pública; (II) das Unidades de Gestão de Integridade; e (III) de Gestão de Riscos para a Integridade; além de editar, para estruturação, execução e monitoramento dos programas, a Portaria CGU 1.089, de 25 de abril de 2018, posteriormente revogada tacitamente pela Portaria CGU nº 57, de 04 de janeiro de 2019.
O impulso não foi ao acaso, não tardando que, em sintonia com esses documentos, órgãos e entidades como o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, o Comando da Aeronáutica, a Capes, a Agência Nacional de Águas e a Advocacia-Geral da União, entre tantos outros, enunciassem seus próprios programas, voltados para suas particularidades e vulnerabilidades.
Estavam definitivamente lançadas as bases do compliance público, assim entendido “o programa normativo de integridade ou conformidade elaborado pelos órgãos e entidades da Administração Pública que, abarcando um conjunto de mecanismos e procedimentos setoriais” destinados a “promover uma eficaz, eficiente e efetiva análise e gestão de riscos decorrentes da implementação, monitoramento e execução das políticas públicas.”
Esse passo evolutivo na governança pública não deve ser subestimado, anunciando um verdadeiro subsistema jurídico de integridade voltado para uma otimização da gestão de riscos, de políticas públicas e de transparência de informações, uma busca constante e obsessiva pela legitimação social e por prevenção, pronta identificação e imediato endereçamentos de eventuais falhas. Ao assim proceder, o poder público, em suas práticas internas de consecução do interesse público, já estará, intrinsecamente, resguardando o próprio interesse público que persegue, sendo absolutamente saudável, nessa senda, o diálogo normativo proposto pelo artigo 23-A do Projeto de Lei n. 10.887/2018.
Fonte: ConJur / Rodrigo Mudrovitsch e Guilherme Pupe da Nóbrega