Nos últimos 10 anos, dentre os grandes fornecedores do governo, um número relevante acabou envolvido em ações de ressarcimento ao erário e de improbidade administrativa. Além do elevado passivo, há o risco de impedimento de contratação com a administração pública – especialmente impactante diante da perspectiva de retomada dos investimentos públicos. Em qualquer caso, é preciso que a análise sobre os riscos efetivamente envolvidos seja clara e precisa, mas isso não é tarefa fácil. Mesmo após 25 anos da lei de improbidade, a temática de apuração dos danos e do cálculo das multas ainda tem seus mistérios.
A improbidade administrativa tem um sorriso de Mona Lisa. Por todos os ângulos tem uma expressão misteriosa: o Ministério Público frequentemente receia por sua ineficácia, enquanto os réus lamentam a “espada de Dâmocles” que ela representa. De fato, ações de ressarcimento ao erário, no contexto da improbidade administrativa, têm se caracterizado por um certo ineditismo (especialmente relacionado à Lava Jato) e incerteza sobre a definição dos valores indenizáveis e de multas, embora na expectativa por grandes condenações. A longa duração das ações, associada à imprescritibilidade de lesão gerada por atos dolosos impõem, ainda, a preocupação com o crescente dos montantes por conta da correção monetária e dos juros.
No contexto das licitações, o concerto entre os concorrentes para definir o resultado de um conjunto de disputas (normalmente as acusações são de acerto para divisão de contratos) gera um dano material e outro imaterial, ambos de difícil apreciação. Por um lado, a prática ilícita compromete o mecanismo licitatório neutralizando a própria finalidade da licitação, o equilíbrio do mercado e a expectativa dos demais agentes sociais. Por outro lado, a fraude gera um prejuízo material cuja estimativa é o atual “Enigma da Esfinge”.
Quando uma contratação é definida por uma licitação viciada pelo prévio ajuste entre os participantes, presume-se que o seu resultado não foi tão eficiente e econômico para a administração contratante, quanto poderia ser. Mesmo assim, normalmente o contrato acaba sendo executado e administração e sociedade se beneficiam dele. Entre fraude e benefício, qual é a medida do dano ou do enriquecimento ilícito?
A prática tem tateado soluções quase nunca seguras e precisas. A premissa base fixada em um julgado relatado pelo ministro Mauro Campbell Marques (AgRg no Ag 1.056.922-RS), no Superior Tribunal de Justiça, é que o contratado tem o direito à contraprestação, mesmo que o contrato com a administração pública seja nulo por falta de licitação, desde que o contratado não tenha concorrido com má-fé para a nulidade. Nessa linha, o STJ já chegou a determinar a restituição do recebido por contrato ilegal e de má-fé, a despeito da efetiva prestação do serviço (AgRg no Ag 1.425.230-SC).
A alternativa equitativa, sustentada inclusive pelo Ministério Público em determinados casos, é que o juiz estime o valor devido a título de indenização. O fundamento é a aplicação analógica do disposto no artigo 952, do Código Civil. Complementarmente, o artigo 210, do Regimento Interno do Tribunal de Contas da União, reforçaria a legitimidade de uma apuração por estimativa, por meios confiáveis.
Essa linha já foi aprofundada pelo Tribunal de Contas da União, que para os casos relacionados aos carteis na Petrobras, aprovou um estudo econométrico para estimar o prejuízo decorrente dos contratos nulos. O acórdão AC-3089-50/15-P, de 2015, do TCU, aprovou um estudo que concluiu que o valor mais provável do potencial prejuízo causado à Petrobrás na redução do desconto das licitações, no período de 2002 a 2015, em razão dos cartéis, teria sido de 17% em relação ao preço estimado para as licitações.
A verdade é que todos esses critérios são imperfeitos, especialmente nos casos de cartel. Em todos os casos, a quantificação dos danos dependeria de variáveis inacessíveis, como a certeza sobre como o mercado teria evoluído na ausência de concerto entre os competidores.
Uma alternativa para contornar essa evidente desvantagem da insegurança e imprecisão, pode ser a adoção da “teoria do produto bruto”. Segundo essa teoria, cabe ao réu da ação de ressarcimento ao erário, em casos de improbidade, provar quais os custos lícitos e razoáveis que efetivamente foram revertidos em benefício da administração contratante. Esse valor comprovado poderia ser creditado em favor do contratado, em casos de improbidade, para fins de apuração do valor a ser ressarcido à administração.
De qualquer forma, a falta de um critério legal adequado ou de critérios consolidados pela jurisprudência é um fator altamente desfavorável a todos os envolvidos. A sociedade perde, com a administração, pela incerteza da integral recomposição dos danos sofridos. As empresas perdem, junto com a sociedade que depende da riqueza que geram e dos serviços que oferecem, diante da insegurança sobre os impactos que a ação pode gerar ao seu final, especialmente quando têm interesse em pagar pelos erros do passado e corrigir seu futuro.
Parece fundamental, a esta altura, que a questão da apuração dos valores relativos a danos ao erário e a multas, em casos de improbidade, receba especial tratamento e definição. Desse aspecto depende a segurança jurídica necessária para um desfecho correto para as ações, para a articulação de acordos legítimos, para a reorganização dos mercados e da economia e para um ambiente favorável ao melhor aproveitamento do investimento público. Todos ganharão com a definição de critérios justos e acessíveis, que permitam ao erário recompor perdas e às empresas implicadas reescrever sua história.
Fonte: Estadão/Saulo Stefanone Alle – especialista em Direito Público do Peixoto & Cury Advogados