Em época de crise decorrente de uma pandemia, pode-se imaginar os efeitos de fomento econômico da disseminação de compras públicas em “plataformas comerciais” para milhares de vendedores ao mesmo tempo.
Apesar de possuir o seu próprio “marketplace” há 24 anos, o governo federal norte-americano anunciou, em 26 de junho de 2020, a contratação da Amazon.com Inc., da Overstock.com Inc. e da Fisher Scientific Inc. para implementarem o “e-marketplace” / comércio eletrônico nas pequenas compras públicas federais (não licitadas) de até US$ 10 mil (US$ 20 mil durante a pandemia do Covid-19). * Há proposição no Congresso para se chegar a US$ 25 mil.
A ideia de utilizar “plataformas comerciais” (privadas) para compras públicas passa por permitir acesso a milhares de fornecedores de todo o país, com produtos a diferentes preços, o que depende do volume de compras, tempo de entrega, logística e outros fatores comerciais. Mas a base é permitir múltiplas opções de fornecedores.
Pelo limite inicial, o montante estimado de demanda nesse projeto piloto para as pequenas compras será de US$ 6 bilhões dos US$ 500 bilhões anuais das compras federais norte-americanas, com o início de operação dentro de 30 (trinta) dias, gradual inclusão de agências / entes públicos federais e prova de conceito de 3 (três) anos, para avaliação.
A primeira discussão que surgiu nesse cenário foi sobre as condições de inclusão dos interessados, vez que no ambiente de compras eletrônicas há grande chance de itens de contrafação / produtos “piratas”, além de produtos oriundos de países de fora dos acordos comerciais, o que também não pode ocorrer.
A segunda discussão foi sobre como filtrar as empresas em termos de qualificação / habilitação, uma vez que hoje o fornecedor do governo americano possui o cadastro no “SAM – System for Award Management”, que demanda prévio “DUNS Number- Data Universal Numbering System”, meio de aferição universal de credibilidade em transações comerciais, mais o “Commercial and Government Entity (CAGE) Code”, da OTAN, que padroniza identificação de fornecedores dos países daquela organização.
Basicamente, os ajustes passam por dispensar certos requisitos, mas sem desconsiderar que é essencial tornar viável o registro e controle do histórico anterior dos fornecedores, como ainda verificar se o fornecedor possui alguma restrição, como “debarment” (impedimento de licitar e contratar com o governo), além de se ter meios de minimizar riscos nos itens ofertados, no aspecto de legitimidade X contrafação/falsificação e pelos países de origem dos produtos (dentro ou fora dos acordos comerciais bilaterais ou multilaterais).
Como as discussões desses assuntos superaram 2 (dois) anos nos Estados Unidos, o Brasil pode ter esses elementos para agilizar as discussões locais sobre plataformas de e-marketplace para compras públicas: como o Brasil irá delegar a plataformas de comércio eletrônico particulares o filtro sobre elementos mínimos de habilitação do fornecedor e eventual impedimento ou suspensão, bem como, crivo sobre o produto ofertado, a impedir produtos falsos ou que contrariem regras de origem vigentes no comércio exterior brasileiro.
A mudança norte-americana é de paradigma, para uso de plataformas comerciais de terceiros, pois desde março de 1996 a Administração de Serviços Gerais (“General Services Administration– GSA”), agência do governo federal americano, já trabalha com o seu próprio “shopping online” para compras públicas, o maior do mundo, que pouco após seu lançamento já contava com 15 milhões de itens cadastrados.
A ideia do marketplace do governo federal norte-americano, o “GSA Advantage”, desde a sua origem, sempre foi o de disseminar as oportunidades com múltiplos fornecedores, cujas variáveis de escolha dependiam e até hoje dependem de volume, tempo de entrega, locais de entrega/logística, ou seja, não apenas um fornecedor para todos os entes públicos do País, não havendo monopólio de fornecedor único.
Tanto isso é relevante que a mesma plataforma possui critério de busca e ordenação, inclusive, exibindo os resultados de pesquisa com fornecedores enquadrados em programas sócio-econômicos, como o de pequenas empresas, empresas de veteranos de guerra e outros, ou seja, mesmo na parte de compras que é aberta para todos os interessados não se tem o monopólio de grandes empresas (ainda que haja uma plataforma central isso não implica em monopolização das compras públicas, pois além do espaço próprio para as pequenas empresas, como as conhecidas cotas, as pequenas empresas também possuem chance de disputar as vendas nos maiores espaços).
Hoje o “GSA Advantage” segue como o mais aperfeiçoado
Marketplace de compras públicas do mundo e, para entrar nessa plataforma, com o que se chama de “schedules” (similares aos registros de preços do Brasil), o processo de seleção é criterioso e pode passar de 12 (doze) meses, uma vez que os compromissos assumidos serão para 5 (cinco) anos iniciais, podendo-se chegar a 20 (vinte) anos com as prorrogações, como se fosse um grande sistema online de gestão de múltiplas atas de registro de preços, por longos anos e que, por isso, demandam confiabilidade dos contratados, mesmo os pequenos e desfavorecidos.
Todos esses elementos remetem ao histórico de que, para superar a crise de 1930 e a crise da queda da indústria bélica do fim da II Guerra Mundial e da Guerra da Coréia, os Estados Unidos utilizaram o poder de compra do estado para descentralizar as contratações públicas por todo o País e com acesso efetivo às pequenas empresas, mesmo na parte maior das demandas, época na qual foi então concebido o “Small Business Act”, de 1953, do qual foram importadas idéias para a Lei Complementar 123/2006 do Brasil.
A propósito, o Japão utilizou a mesma estratégia de descentralizar compras públicas para se reerguer da guerra, gerando emprego, renda, tributação e desenvolvimento para se tornar potência em poucos anos.
Enfim, vem chegando uma onda de revoluções em compras públicas, passando-se ao uso de plataformas privadas de marketplace para compras públicas, mas não se pode esquecer que o projeto noticiado é de pequena fração em experimento nos Estados Unidos, onde, há 24 anos já existe marketplace do próprio governo federal baseado em múltiplos fornecedores, o que continuará havendo nas compras via plataformas privadas.
Isso tudo é relevante e precisa ser considerado.
Fonte: Jonas Lima, advogado especialista em licitações internacionais