Fui surpreendido com a notícia de que o congresso brasileiro prepara nova legislação extinguindo o uso de gasolina e diesel por veículos em 2040 e a fabricação destes já em 2030. Certamente esta iniciativa é motivada por legislações semelhantes surgidas em países europeus, em especial para aqueles com baixa dependência de combustíveis fósseis.
Até esta novidade surgir, projeções da Bright Consulting indicavam como 10% a parcela de híbridos e elétricos no mercado nacional em 2030, número que mudará drasticamente caso a legislação seja aprovada. Teriam os legisladores o conhecimento dos custos e implicações técnicas que esta decisão geraria?
LEGISLAÇÃO DEVE FOCAR NAS DEMANDAS DA SOCIEDADE, NÃO EM MODISMOS
Certamente a regulação está entre os fatores mais importantes para a escolha da mobilidade que queremos. Como reflexo dos desejos da sociedade, a regulação é uma excelente ferramenta de alinhamento de demandas e de esforços dos provedores. Se criada por modismos ou por ideologia, estará dissociada do que quer a população e consistirá em um entrave ao invés de uma solução.
Esta proposta passa por outras perguntas menores: teremos etanol suficiente para essa demanda a preço razoável? O consumidor estará pronto para pagar por esses veículos híbridos e elétricos mais caros? A medida afeta caminhões e ônibus? Ou o diesel continua oferecido para estes segmentos? Existirá geração elétrica para suportar o aumento da demanda no transporte? Será permitida a geração doméstica? A qual tributação?
Como representação da sociedade, o congresso faz as leis que a sociedade demanda e a redução de emissões de poluentes e gases estufa é uma prioridade. Porém, com suas dimensões continentais e frota escassa por habitante, a solução para a cidade de São Paulo não pode ser a mesma que a solução de Cuiabá. O que quer o habitante dessas cidades?
DIFERENTES SOLUÇÕES DE MOBILIDADE PARA DIFERENTES REGIÕES DO BRASIL
Já faz tempo que o transporte público está mais rápido que o transporte individual em São Paulo. Resta dar mais conforto e capilaridade. Mais linhas de metrô, mais vias para ciclistas e mais transportes circulares de curto trajeto próximo às estações de metrô parecem ser as soluções de consenso e os investimentos têm sido aplicados nesse sentido, mas em volume inferior às necessidades. Táxis e aplicativos de transporte entram nesta conta, com mais e menos benefícios e custos.
Fora das vias e horários mais congestionados, os veículos compartilhados também representam uma boa solução: aluguel por hora ou por quilômetro rodado são aceitáveis. Teremos mais hubs para a retirada desses veículos, tais como concessionárias, grandes lojas de autopeças, supermercados. Pode-se comparar esta evolução a lotéricas fazendo pagamentos e recebendo tributos – por que não?
Já o consumidor de Cuiabá não tem as mesmas necessidades. A emissão de gases é proporcionalmente menor e tem dispersão facilitada. Os trajetos são diferentes. A única vantagem para um veículo compartilhado é a distribuição de seus custos com outros usuários.
Isso significa que um usuário de Cuiabá deve ter carro próprio e o de São Paulo não deve? Não necessariamente, mas é muito mais provável encontrar habitantes que abandonaram o carro próprio em São Paulo do que em Cuiabá. O automóvel próprio continuará servindo para viagens de fins de semana até o momento em que o compartilhamento também tornar tiver utilização mais atrativa e com o veículo adequado a cada viagem.
As possibilidades de home-office ou de reagrupamento de regiões de trabalho também vão solucionar muita coisa.
FABRICANTES DE VEÍCULOS NÃO FICAM FORA DO JOGO, MAS DIVIDEM ESPAÇO COM OUTRAS EMPRESAS
Quem serão os provedores destes veículos compartilhados? Quais os ativos necessários? A começar pelos próprios veículos, muito mais voltados à eficiência no seu uso específico do que no design ou desempenho extremo, afinal ninguém escolhe um táxi pela sua habilidade de acelerar de zero a 100km/h. Espaço, ergonomia, capacidade de bagagem, custo operacional, confiabilidade, durabilidade serão as ordens do dia e as montadoras conhecem tudo isso. Portanto, não vejo como deixar as montadoras fora da solução.
Também será necessário um sistema operacional capaz de oferecer, entregar, autorizar, controlar, receber, lavar, abastecer, manter, estacionar, pedagiar os veículos. Ninguém melhor do que uma locadora para fazer isso, embora existam empresas capazes de prover apenas o sistema operacional necessário.
Em terceiro lugar, será essencial ter capital para a compra, depreciação e amortização desses veículos – um banco ou financeira. Portanto, na minha opinião, a união montadora + locadora + agente financeiro tem todos os ingredientes para assegurar uma frota de veículos compartilhados. Muitas montadoras já perceberam isso e formaram braços para esta empreitada, se associando ou trazendo para si o capital humano necessário e competente.
Toda a cadeia de fornecedores a concessionários será afetada, isso sem falar na vida desses veículos como usados, para clientes e mercados que não os querem. Vai aumentar a depreciação e exportação de veículos de regiões densamente povoadas para áreas onde a propriedade de veículos ainda é mais valorizada. Um novo equilíbrio de negócios no nosso Brasil continental.
Fonte: Automotive Business /Cassio Pagliarini