A nova Lei de Licitações assume explicitamente a relevância dos programas de integridade no âmbito das contratações públicas. Se por um lado, as previsões da Lei n.º 14.133/21 sobre o tema possuem inegável potencial para representar um marco no aperfeiçoamento das relações público-privadas; por outro, a sua efetivação traz grandes desafios à Administração Pública, sobretudo em face do nível de maturidade dos programas de integridade no Brasil e do risco de estímulo aos sham programs (ou programas “para inglês ver”)
Vale mencionar que a inserção da temática do compliance em leis brasileiras de contratação pública não é, propriamente, uma novidade; outras leis e projetos de leis estaduais e municipais já haviam adotado caminho semelhante — as mais notórias são a Lei n.º 7.753/2017 do Estado do Rio de Janeiro e a Lei n.º 6.112/2018 do Distrito Federal . Por essa razão, os principais contributos, de partida, da Lei n.º 14.133/21 são a horizontalização do tema para todo o âmbito federativo e a pacificação de questionamentos acerca da constitucionalidade de leis aprovadas por outros entes, considerando a competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de licitação e contratação (artigo 22, XXVII, da CF).
As opções do legislador — que terão aplicação sobre licitações e contratos das Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios — consagram quatro funcionalidades para adoção de programa de integridade:
- Requisito obrigatório nas execuções contratuais (de obras, serviços e fornecimentos) de grande vulto: nos casos de contração de grande vulto (em que o valor estimado da contratação supera R$ 200 milhões), o edital deverá prever a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor, no prazo de seis meses, contado da celebração do contrato (artigo 25, §4º);
- Critério geral de desempate entre licitantes: em caso de empate entre duas ou mais propostas, o desenvolvimento pelo licitante de programa de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle, será levado em consideração como uns dos critérios de desempate entre as propostas — o quarto e último, em ordem de relevância, critério de desempate (artigo 60);
- Imposição e dosimetria de sanções administrativas: na aplicação das sanções serão considerados a implantação ou o aperfeiçoamento de programa de integridade, conforme normas e orientações dos órgãos de controle (artigo 156, §1º); e
- Condição para a reabilitação do licitante: nos casos de aplicação da sanção pela prática de atos lesivos previstos no artigo 5º da Lei n.º 12.846/13 (Lei Anticorrupção) ou apresentação de declaração/documentação falsa no certame ou durante a execução do contrato, a implantação ou aperfeiçoamento de programa de integridade é condição de reabilitação do licitante ou contratado (artigo 163, parágrafo único).
Na mesma linha de diplomas anteriores , a ênfase do modelo adotado pelo legislador federal para contratações de grande vulto está situada na aferição a posteriori à celebração do contrato, privilegiando, assim, a oportunidade de adequação dos licitantes, uma vez que a verificação da implantação do programa de integridade deverá ocorrer no prazo de seis meses, contados da celebração do contrato. Vale o registro de que se trata de uma opção, diversa da aferição a priori, em que a existência do programa de integridade pode ser definida como requisito de habilitação ou mesmo critério técnico para pontuação dos licitantes.
Os maiores desafios práticos à Administração Pública, gestores dos contratos e licitantes para a garantia da eficácia das previsões situam-se na forma de comprovação e metodologia de avaliação dos programas de integridade. A colocação de questões simples ajudam a situar alguns desses desafios: a quem (gestor/órgão) incumbirá as funções de avaliação e fiscalização dos programas de integridade? Quais os parâmetros e metodologia para a avaliação e fiscalização dos programas de integridade? O (gestor/órgão) responsável está capacitado para exercício de tais funções?
As respostas ainda não foram dadas.
O legislador, no artigo 25, §4º, da Lei n.º 14.133/21, transferiu para regulamento — ainda não existente — a definição das medidas a serem adotadas, a forma de comprovação e as penalidades pelo descumprimento das obrigações relacionadas a programas de integridade.
Espera-se que a regulamentação vindoura se beneficie da experiência e dos parâmetros de avaliação de programas de integridade já consolidados pela Administração Pública Federal, sob o protagonismo da Controladoria-Geral da União (CGU), no enforcement da Lei Anticorrupção (Lei n.º 12.846/13), não divergindo significativamente, portanto, de parâmetros consolidados em normas e standards existentes (com destaque ao Decreto n° 8.420/2015, Portaria CGU n.º 909/2015 e standards da CGU).
Outro aspecto bastante sensível para efetivação das exigências de compliance é a definição de competências e a capacitação dos gestores ou órgãos responsáveis pela aferição das medidas. Uma análise comparativa, tomando como exemplo as Leis n.º 7.753/2017 (RJ) e Lei n.º 6.112/2018 (DF), revela a opção desses entes de incumbir ao gestor do contrato a função fiscalizatória.
Sem qualquer pretensão de propor soluções de lege ferenda nessas brevíssimas linhas, ressalta-se que o êxito da nova regulamentação dependerá da adoção de parâmetros que assumam como diretriz geral a não aceitação de sham programs para fins de cumprimento das exigências da Lei n.º 14.133/21, recusando-se a validação de programas de integridade meramente formais e ineficazes quanto à mitigação de riscos relativos a atos lesivos contra a Administração Pública.
Finalmente, o alcance de tais parâmetros — seja na regulamentação do tema pelo Poder Executivo Federal, seja na sua aplicação pelas Administrações Públicas — pode e deve se beneficiar do intercâmbio de boas práticas e metodologias de avaliação de programas de integridade desenvolvidas por órgãos de controle interno (controladorias-gerais) de todo o país para fins de enforcement da Lei Anticorrupção, desde a sua entrada em vigor , e promoção de ações de reconhecimento e fomento à adoção voluntária de programas de integridade.
Fonte: ConJur / Gustavo Justino de Oliveira e Otávio Venturini