Há quem diga que uma janela histórica é aberta por uma sociedade ou nação quando fatores políticos, socioeconômicos ou culturais se somam de forma a propiciar um salto estrutural capaz de levar essa sociedade a um patamar civilizatório mais avançado.
No Brasil dos anos 1990, o acesso universal e gratuito aos serviços de saúde a todos os brasileiros, com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), pode ser considerado, em muitos sentidos, um salto civilizatório. Diversos profissionais tornaram possível a abertura desta “janela”, mas um, em especial, merece lugar de destaque nesse episódio da história da saúde coletiva: o médico Hésio de Albuquerque Cordeiro (1942-2020).
Pioneiro na articulação entre medicina e ciências sociais, Cordeiro, falecido em 8 de novembro de 2020, idealizou um sistema público de saúde menos excludente e desigual. Esse sonho começou a virar realidade no dia 21 de maio de 1985, quando ele assumiu a presidência do Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (Inamps).
“Quando tomou posse como presidente do Inamps, em 1985, diante de auditório lotado na sede da entidade, na Rua México, 128, centro do Rio de Janeiro, [Hésio] prometeu acabar com a entidade para colocar em seu lugar um sistema público universal de saúde. Sem vaidades, generoso, discreto, sorridente, foi um dos maiores brasileiros dos últimos tempos. Um gigante como Hésio Cordeiro fará enorme falta”, lembra o cientista social e ex-presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Paulo Henrique de Almeida Rodrigues, em depoimento sobre o amigo.
O Inamps
Em 1977, o governo militar instituiu pela Lei nº 6.439 o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (Sinpas), com o objetivo de promover um novo desenho institucional para o sistema previdenciário. A iniciativa transferiu parte das funções até então exercidas pelo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) para duas novas instituições.
A assistência médica aos segurados foi atribuída ao Inamps e a gestão financeira ao Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social (Iapas). Ao INPS coube apenas a concessão de benefícios a empregados e empregadores urbanos, rurais e a seus dependentes. Consistiam em aposentadorias (invalidez, velhice ou tempo de serviço), pensões, auxílios, abonos, pecúlios, salários-família e maternidade e seguros por acidentes de trabalho.
De sua criação em 1977 à posse de Cordeiro em 1985 e posterior extinção em 1993, o Inamps transitou de um modelo voltado à prestação de serviços médico-hospitalares a trabalhadores formais, a um sistema desenhado para garantir acesso universal aos serviços de saúde, com base no princípio da seguridade social. Foi a transição de uma política pública com viés econômico, no qual os sem carteira assinada recorriam ao sistema privado, aos poucos serviços municipais e estaduais ou às instituições assistencialistas, como Santas Casas de Misericórdia ou hospitais universitários, para um modelo que visava ao bem-estar social. A presidência de Hésio no órgão foi um divisor de águas nesse sentido.
O médico baseou sua proposta gerencial em cinco grandes frentes: gestão colegiada, descentralizada e democrática, com participação das instâncias representativas da população; orçamento que viabilizasse a cobertura assistencial de acordo com as condições de saúde da população; recuperação dos serviços públicos com investimentos e custeio da rede; melhoria da qualidade técnica da prestação dos serviços; redistribuição interna da renda nacional, descentralizando os recursos destinados às regiões Sul e Sudeste para as demais regiões.
Na presidência do Inamps, Cordeiro ainda levou o órgão a defender as bandeiras da Reforma Sanitária e a construir os alicerces do futuro SUS: saúde como direito de todos e dever do Estado; universalização e integralidade na assistência à população; sistema único, descentralização, participação e controle da população como elementos fundamentais a serem alcançados. Desse processo nasceram as Ações Integradas de Saúde (AIS) e o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS ), que precederam o SUS.
De acordo com José Luís Fiori, a “bússola” da gestão de Hésio Cordeiro à frente do Inamps foi um texto redigido a muitas mãos em 1976, publicado em 1979 na Revista do Cebes, sobre “A questão democrática na área da saúde”. Assinado por Hésio, o próprio Fiori e Reinaldo Guimarães, o documento se converteu em verdadeiro manifesto do movimento sanitário brasileiro, nos primeiros anos da década de 1980, até seu reconhecimento e oficialização na VIII Conferência Nacional de Saúde, no ano de 1986.
Do Inamps ao SUS
A prioridade central da gestão de Hésio foi a universalização do acesso aos serviços de saúde, com o fim de reduzir as imensas desigualdades regionais entre populações urbanas e rurais. Em sua gestão, as Ações Integradas em Saúde (AIS) – pequenos postos de saúde criados a partir de convênios das prefeituras com a Previdência Social, considerados berços da atenção básica, atual porta de entrada do SUS – foram expandidas para cerca de 2.500 municípios, área geográfica onde viviam aproximadamente 90% da população do país.
Nesse momento teve início também a implantação do Sistema Único Descentralizado de Saúde (SUDS), através de convênios com secretarias estaduais e municipais de Saúde. O SUDS foi uma iniciativa do próprio Inamps no sentido de universalizar a assistência, que desde os anos 1970 já vinha incluindo grupos que não contribuíam com a previdência, mas até então beneficiava principalmente trabalhadores da economia formal, com “carteira assinada”, e seus dependentes.
De fato, operava no Brasil um sistema excludente, no qual os mais ricos acessavam os recursos da saúde e também os “previdenciários”, que tinham direito a serviços próprios ou conveniados pela Previdência Social. Sobravam os indigentes e miseráveis, dependentes da caridade ou da disponibilidade do Estado.
A formalização do SUS na Constituição de 1988 reverte completamente esse cenário. O sistema consolida o acesso gratuito e igualitário aos serviços para a promoção, proteção, recuperação e reabilitação dos indivíduos. Foi baseado em três linhas estruturantes: universalidade (acesso a todos, sem discriminação), equidade (priorizar os que mais necessitam para alcançar a igualdade) e integralidade (ouvir o usuário, entendê-lo inserido em seu contexto social).
Tais princípios norteadores, inspirados no movimento da Reforma Sanitária, buscavam conceitualmente, segundo o próprio Hésio em artigo sobre o tema, superar as visões tecnocráticas de correntes do planejamento e da administração da saúde. Tratava-se de estabelecer uma alternativa que visava à articulação das ciências sociais com a medicina, em particular a epidemiologia, a determinação social das doenças (condições de vida e trabalho que afetam um indivíduo e podem provocar doenças) e as políticas públicas de saúde.
Os passos decisivos para que se elaborassem os princípios e a prática da Reforma Sanitária foram dados na VIII Conferência Nacional de Saúde. O evento foi realizado em Brasília, entre 17 e 21 de março de 1986, sob a presidência de Antônio Sergio da Silva Arouca, ex-presidente da Fiocruz, após conferências preparatórias efetuadas em todos os estados da Federação.
Na VIII Conferência foram lançados os fundamentos do sistema público de saúde que viria a ser definido pela Constituição Federal de 1988, garantindo a saúde como direito de todos e dever do Estado, e instituído pela Lei 8.080 de 1990. O Inamps e suas competências foram extintos em 1993 e transferidos, gradativamente, para as instâncias federal, estadual e municipal gestoras do SUS. Sem dúvida, um salto civilizatório conduzido pelo empenho e esforço da sociedade civil amparada por nomes como os de Hésio Cordeiro.
Reconhecimento e memória
A mudança que Hésio promoveu naquela época é reconhecida por profissionais de destaque na saúde pública no Brasil. É o caso do ex-presidente da Fiocruz Paulo Marchiori Buss. De acordo com Buss, serviços próprios do Inamps começaram a ser efetivamente recuperados “depois de anos de deliberado sucateamento, que visava sua aniquilação e substituição total pelos hospitais privados lucrativos”. Ainda seguindo Buss, aquele foi um período no qual se estabeleceu, cientificamente, a relação entre saúde, estrutura social e condições de vida. Completa o médico: “raras vezes uma instituição compreendeu tão bem o papel da preparação de recursos humanos e do desenvolvimento científico e tecnológico para as ações de saúde, como a gestão de Hésio no Inamps”.
Fonte: Café História / Cristiane d’Avila