No mundo pós-pandêmico, as startups dedicadas à transformação digital do setor público têm papel fundamental na construção de Estados mais sustentáveis, transparentes e democráticos.
“Você enlouqueceu?!”A surpresa, até bem pouco tempo atrás, era quase inevitável quando alguém anunciava a intenção de entrar no ecossistema govtech. Aos olhos inquietos de muitos empreendedores, fazer negócio com o governo (de qualquer esfera, na maioria dos países) nunca teve o apelo (e o charme) da inovação 4.0. O setor público é gigantesco, complexo e fragmentado. Complicado de navegar. Burocrático e moroso, pouco atraente aos investimentos de impacto. Avesso ao risco, sem a efervescência da cultura da experimentação.
E é tudo verdade. Nunca foi fácil mesmo circular pelos meandros da máquina pública.
O cenário, porém, começou a dar sinais de mudança há uns cinco anos. “Foi impulsionado por uma tempestade perfeita que combinou o amadurecimento da nova infraestrutura digital, como computação em nuvem e aplicativos no modelo SaaS, com a flexibilização das leis de compras públicas, a disponibilidade de capital de investimento, novos executivos C-level, com experiência em tecnologia para governo e um ecossistema de apoio”, explica Dustin Haisler, diretor de inovação da americana e.Republic, empresa de pesquisa e mídia especializada no setor govtech.
Nada, no entanto, se compararia ao impacto provocado pela pandemia do novo coronavírus. Depois de o SARS-CoV-2 fazer suas primeiras vítimas em Wuhan, na China, em dezembro de 2019, o ritmo da renovação explodiu. A humanidade trancada em casa, a vida confinada na rede. A transformação digital se impôs ao setor público. Era inevitável. “Houve uma mudança radical”, define a PEGN Tanya Tiler, pesquisadora da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, fundadora da consultoria StateUp e uma das principais figuras nos estudos do ecossistema govtech global. No Brasil, em 2020, o número de serviços públicos digitalizados chegou a cerca de 3 mil contra os 1,7 mil do ano anterior. A título de comparação, em 2017, esse número não passava de 500.
A agilidade proporcionada por estratégias e ferramentas inovadoras se revelou imprescindível não só no enfrentamento da crise sanitária como nos trabalhos de recuperação pós-pandemia. “Govtech deixou de ser assunto de nicho e virou mainstream”, diz o advogado Guilherme Dominguez, cofundador e CEO do BrazilLab, o primeiro hub de inovação no Brasil dedicado a fazer a conexão entre startups e poder público. “A aspiração virou realidade.”
Está em curso uma revolução no universo govtech
Um indício da aceleração é dado pela análise comparativa de dois importantes levantamentos sobre o setor. O primeiro é do Crunchbase. Entre 2003 e 2019, as govtechs listadas na plataforma americana obtiveram US$ 2,8 bilhões em investimentos. Dois terços dos quais, no entanto, apenas de 2014 em diante. A segunda pesquisa é da Nebula, base de dados global administrada pela StateUp. As 21 maiores startups, entre as 450 catalogadas, receberam cerca de US$ 680 milhões em aportes somente em 2020. Avaliado em US$ 400 bilhões, o setor deve chegar a 2025 com US$ 1 trilhão. Festejadíssimas entre os inovadores, as fintechs e as cybertechs, juntas, não chegam nem perto disso.
Outro exemplo? Em 2020, segundo o relatório Govtech Market Overview | Q2 2021, elaborado pela consultoria americana MergerTech, a Tyler Technologies entrou para o S&P 500, firmando-se como a primeira empresa inteiramente dedicada ao setor público a figurar entre as 500 maiores companhias listadas na Bolsa de Valores de Nova York e na Nasdaq. Desde então, ultrapassou três vezes as estimativas de EPS (Earnings Per Share). No trimestre encerrado em setembro de 2021, a receita foi 40% maior do que no mesmo período de 2020. Sediada no Texas, a Tyler é o maior fornecedor de software para o setor público nos Estados Unidos. Nos mercados govtech mais consolidados, como o americano e o europeu, fusões e aquisições começam a ser vistas com mais frequência.
Em alguns países com mais intensidade do que em outros, o amadurecimento do setor govtech é um fenômeno mundial. O documento Digital Government in the Decade of Action for Sustainable Development, produzido pela Organização das Nações Unidas (ONU), é um forte indicador desse movimento. A digitalização do setor público se consolida em todos os 193 Estados-membros – inclusive nos mais pobres. Atualmente, 65% das nações estão nas categorias alta e muito alta do EGDI (E-Government Development Index, na sigla em inglês). “O ano de 2020 foi bastante significativo no benchmarking global”, escreve Liu Zhenmin, subsecretário para Assuntos Econômicos e Sociais, da ONU, na apresentação do trabalho. “Mais do que nunca, os governos foram lembrados de que a transformação digital é imprescindível para o desenvolvimento sustentável dos países e que é preciso inovar constantemente, mesmo em tempos difíceis.”
Não é uma questão de escolha, mas de obrigação, defende a economista espanhola Sandra Sinde, diretora de compras públicas e inovação aberta da consultoria Idom: “A única forma de enfrentar as complexidades de nossos dias”, pontua, em seminário realizado recentemente sobre o tema pelo BrazilLab, Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) e Amazon Web Services (AWS). Uma ferramenta essencial na construção de Estados transparentes, justos e democráticos.
Não é uma questão de escolha, mas de obrigação, defende a economista espanhola Sandra Sinde, diretora de compras públicas e inovação aberta da consultoria Idom: “A única forma de enfrentar as complexidades de nossos dias”, pontua, em seminário realizado recentemente sobre o tema pelo BrazilLab, Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) e Amazon Web Services (AWS). Uma ferramenta essencial na construção de Estados transparentes, justos e democráticos.
O Brasil tem a oportunidade de se firmar como um dos mais importantes players do ecossistema govtech global. “Essa pauta sempre avançou no país, a despeito dos presidentes da República”, lembra Guilherme Dominguez, do BrazilLab. Nosso modelo de votação eletrônica, por exemplo, é referência mundial. Somos pioneiros na declaração digital do imposto de renda. A plataforma gov.br soma 115 milhões de usuários (em 2019, eram 1,8 milhão) e aparecemos na sétima colocação no ranking do Banco Mundial entre os dez países com o maior número de serviços públicos digitalizados – o GovTech Maturity Index 2020 avaliou 198 nações. Sem esquecer, claro, do entusiasmo dos brasileiros com tecnologia – estamos entre os maiores early adopters.
Avançamos também no campo da legislação. Recentemente foram aprovados três instrumentos jurídicos que facilitam os negócios entre startups e setor público. A Lei de Governo Eletrônico prevê a aceleração da migração dos serviços públicos para plataformas digitais. A Nova Lei de Licitações unifica o regime jurídico sobre contratos administrativos. E, por fim, o Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador moderniza o ambiente de negócios, firmando os meios de contratação de inovações tecnológicas pelo Estado.
Aos poucos, ganhamos relevância no ecossistema govtech global. “O Brasil é um mercado de sonho”, define Tanya Tiler. Não é para menos. Somos um país enorme, de dimensões continentais, populoso. “Milhares de governos – de megacidades a pequenos municípios, todos com a necessidade crescente de adotar a digitalização. Para qualquer empresário disposto a atender às demandas do grande público e experimentar negócios em diferentes escalas e em diversos tipos de contextos, o Brasil é, em muitos aspectos, uma grande oportunidade”, avalia a pesquisadora inglesa.
Um terço do PIB brasileiro está na mão do Estado. Cerca de 72% da população só tem acesso à saúde via Sistema Único de Saúde. São cerca de 80 milhões de pessoas na assistência social. Oito de cada dez alunos do ensino médio estão na educação pública. E 42% da população usa diariamente o transporte público. “Sem contar a larga oportunidade em serviços financeiros, pelos quais pagamos trilhões em impostos”, diz Gustavo Maia, fundador e CEO da Colab, plataforma de cidadania para uma gestão pública mais colaborativa e eficiente – uma das primeiras govtechs brasileiras e uma das mais conceituadas no mercado internacional. “Será que temos um bom mercado aí para explorar?”, provoca ele.
O investidor de risco Guilherme Lima, lista outros fatores que devem impulsionar o avanço do setor no Brasil:
– Com a aceleração de diversas iniciativas durante a crise sanitária, os governos já perceberam a necessidade e a efetividade da transformação digital do setor público.
– Apesar do sentimento comum levar ao sentido oposto, o ciclo de vendas para o setor público está cada vez mais parecido com o das grandes empresas privadas.
– Ultraconectada e mais bem informada, a população está mais exigente em relação à eficiência e transparência da administração pública.
Tem mais. O lema dos inovadores não é “apaixone-se pelo problema e não pela solução”? Pois, então… Carências e ineficiências não nos faltam.
A digitalização do governo pode ainda ajudar a recuperar os cofres públicos. Oito em cada dez prefeituras brasileiras estão com as contas em situação crítica ou muito crítica.
Outra vantagem da digitalização – ajudar na recuperação financeira das contas governamentais. Cada R$ 1 investido em programas de transformação digital proporciona uma poupança de R$ 5, no mínimo, segundo a Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, do Ministério da Economia.
Um atendimento presencial tem um custo médio de cerca de R$ 44. O atendimento online, R$ 1,20. Uma redução de 97% em recursos públicos, por transação. Entre janeiro de 2020 e janeiro de 2021, graças aos serviços digitalizados, foram poupados R$ 2 bilhões. E não é apenas o poder público que ganha, não. Segundo dados da Secretaria de Governo Digital, daquele total, R$ 1,5 bilhão é economizado pelos cidadãos.
Ao fim e ao cabo, a revolução govtech é sobre pessoas. Sobre restaurar e garantir a confiança dos cidadãos no Estado. Sobre transparência, sustentabilidade e crescimento.
Fonte: PEGN-Globo/Karina Pastore