“Não existe ateu no quilômetro 30 de uma maratona”. A frase de efeito, conhecida por corredores de longas distâncias, traz consigo ensinamento retilíneo, objetivo, e que, quiçá, toca camada mais interior da psique humana.
Antes que ingresse, nesse sintético texto, em assunto mais árido, falemos de algo mais aprazível, sem dúvida. Falemos, por óbvio, de corrida de endurance.
Correr uma maratona envolve, ao menos, um pouco de sofrimento, seja para os que a completam em 4, 5 ou 6 horas, seja para os super-humanos que logram um honroso sub-3h. O próprio inspirador da prova, o soldado Fidípedes que, no século V a.C., teria corrido da cidade de Maratona a Atenas, a fim de avisar o êxito na batalha mais famosa da Primeira Guerra Médica, caiu morto de exaustão, após dar o recado. Na verdade, diz a lenda, ele teria corrido mais de 200 km. Tudo bem, isso pouco importa. De maior relevo, o que se traz à baila é justamente a superação do sofrimento, âmago que torna essa prova tão emblemática no atletismo mundial, e que, tradicionalmente, encerra os Jogos Olímpicos.
Existe um mito, entre maratonistas, que diz respeito ao “muro do km 30” (ou 32). Há quem diga que se trata, na realidade, de um erro de estratégia, que acomete aqueles que gastam muito de sua reserva de glicogênio na primeira metade da prova, e que veem a fadiga irromper bruscamente quando alcançam o último quarto da corrida. O ácido lático acumulado bate de uma vez. Muitos começam a caminhar, em uma síncope de stress físico e mental. Um passo de cada vez. Os últimos 10 km podem demorar uma eternidade para quem entra nesse estado. Incorre-se, nessa ocasião, numa busca interna por superação, uma conversa íntima, e, não raramente, um clamor por ajuda divina.
O aforismo acima pode ser bem delineado da seguinte forma: em tempos de tensão e de ameaças, em que somos compelidos à sobrelevação, a tendência é que nos voltemos à essência do que funciona. Que as crenças sejam (re)modeladas à luz da efetividade, e não da forma autocentrada. E, acima de tudo, que as falácias caiam por terra, que os sofismas sejam, ainda que momentaneamente, deixados de lado.
A pandemia nos levou, de supetão, ao km 30 de uma maratona. E, no caso, não temos a opção de escolha, enquanto sociedade: temos que bem completar a prova, ainda que haja, como dito, o sofrimento a cada passo. Ainda que duvidemos que iremos conclui-la. Ainda que, quando cheguemos ao último posto de hidratação, lá pelo km 37, a água tenha acabado. O convite e a exigência são um só: o de reinvenção, o de foco nos resultados, e o de releitura de nossas crenças.
Uma dessas releituras, enquanto sociedade, alude ao papel das contratações governamentais como preditora de políticas públicas, lato sensu. Respondendo por números cabalísticos de cerca de 15% do PIB das nações, o poder de compra estatal é tido, há tempos, como detentor de potencial de bem fomentar mercados, de predizer melhorias sociais e de impactar positivamente ações ambientais. Tal é a relação entre compras públicas e desenvolvimento nacional sustentável, ainda que eu – digo logo – entenda que nada há de mais inapropriado do que o verbete “sustentabilidade”. Ah, e nada de polêmica aqui.
Não, caro(a) leitor(a). Não sou contra a sustentabilidade. Muito pelo contrário. Sou um dos defensores mais ferrenhos do uso das contratações públicas como variável independente da sustentabilidade. O corolário, aqui, é que “sustentabilidade” é um conceito muito (mas MUITO) amplo. Há uma miríade de dimensões (e subdimensões) envolvidas. Ambiental. Social. Econômica. Cultural. No frigir dos ovos, todas as políticas estatais podem estar inscritas no bojo da sustentabilidade. Quer ver? Se criássemos um Ministério da Sustentabilidade, o que estaria dentro dele? Meio ambiente. Educação. Economia. Direitos Humanos. Transparência, claro. Agricultura. Cidadania. Infraestrutura… e por aí vai. E, justamente aí, temos um problema. Quando um conceito é tão abrangente, ele deixa de ser instrumental. Ele é tudo. E, ao ser tudo, ele passa a abarcar vetores que se chocam, autofágicos que são.
No mais, sem me alongar, acho muito difícil a existência de um desenvolvimento nacional “insustentável”. Da mesma sorte, uma compra pública “insustentável” contraria o art. 3º da Lei nº 8.666/93. Ou seja, é ilegal. Sustentabilidade, pois, é, nesses casos, um pleonasmo, que mais atrapalha do que ajuda em termos cognitivos – é uma estampa que tem se autossabotado, eis a ótica pessoal.
Mas vamos em frente. O Brasil, hoje, vive uma das crises socioeconômicas mais contundentes de sua história. Temos mais do que a população do Canadá de desempregados, trazem as manchetes de jornais, com cerca de 40 milhões de cidadãos sem trabalho. 3% das micro e pequenas empresas fecharam suas portas, até o momento, em face da calamidade da Covid-19. A pandemia, enquanto adversário inédito, agressivo e incompreendido, nos aflige de modo agudo. No entanto, o prolongamento, no tempo, da intensidade de seus efeitos dá vestes de um agudocrônico, um hibridismo inevitável e nefasto. O processo é o de institucionalização do caos, eis a franca linguagem.
Em detida perspectiva, esse agudo-crônico da Covid-19 vem alimentando diversas outras mazelas também crônicas em países menos desenvolvidos, que, em verdade, são agudas nas suas essências. Pobreza. Mortes por desnutrição. Corrupção. Desemprego e precarização de relações trabalhistas. Violência doméstica. Desigualdade social. Perda de arrecadação. Evasão escolar e paralisação do ensino público. O hiato existente entre sistemas de seguridade social e a massa populacional em trabalho informal em economias emergentes suscitam danos pronunciados, eis o que se testemunha.
Km 32. Nesse ponto, os mais céticos que, outrora, em tempos de paz, bramiam contra o uso das compras públicas como boas preditoras (sustentáveis!) do desenvolvimento socioeconômico, têm o eco de suas vozes diminuído. A crença é uma só: contratações públicas, no País, devem ser empregadas para o fomento de micro e pequenas empresas, em paradigma que garanta, ao mesmo tempo, franca competitividade. Devem trazer novos fôlegos a microempresários individuais, a cooperativas. Em paralelo, deve-se garantir o maior fluxo de capital, até mesmo em termos de créditos, como estatui a inovadora Instrução Normativa nº 53/2020, da Secretaria de Gestão do Ministério da Economia, que institui a antecipação de recebíveis. Deve-se, ademais, garantir melhores ambientes de negócios, em harmonia, vejamos, com o próprio Doing Business, métrica adotada pelo Banco Mundial.
Chegaremos, com esperança, ao final dessa maratona, com êxito. O ácido lático será dissolvido, e a tendência humana é a de relativizar o sofrimento, como forma de suavização de nossas memórias. A esperança é a que estejamos institucionalizando essa concepção mais logística, mais enxuta, mais…. socioeconômica. E, após, que façamos valer a divisa, aqui adaptada desde o nosso Exército: “lembrai-vos da maratona”.
Texto inédito de Renato Fenili