Os desafios estruturais e conjunturais demandam do próximo presidente da República o planejamento e a implementação de uma estratégia de ação no campo da gestão pública que enfrente problemas e gargalos cada vez mais urgentes. Apesar das constantes reduções dos investimentos nas políticas públicas do governo federal em todos os seus setores nos últimos anos, surpreendentemente, o período foi marcado também por avanços, mesmo que em pequena escala, no debate e nas práticas de inovação no setor público, incluindo as diversas experiências bem sucedidas de transformação digital, governo aberto, arranjos e parcerias público-privado e com a sociedade civil e aprimoramento de modelos de compras públicas.
No entanto, a sensação predominante na sociedade é de desconfiança quanto à capacidade e competência do Estado em gerir determinados setores e serviços. Essas visões, frequentemente contaminadas pelas denúncias de corrupção e por visões estereotipadas da administração pública, também tendem a gerar respostas simplistas e binárias para questões complexas. A efetiva gestão das políticas públicas não é nada trivial na medida em que é preciso equacionar características de natureza política-institucional que constrangem e/ou dificultam a implementação efetiva dos planos de governo, tais como a necessidade de formar maioria no Congresso, o pacto federativo, os processos de judicialização das políticas e os avanços das instituições de controle burocrático, entre outros.
Nesse contexto, construir uma estratégia de ação que reconheça essas características, a complexidade da máquina pública e, ao mesmo tempo, aprimore a gestão e as políticas públicas para elevar a satisfação e confiança do cidadão é um bom começo. Para tanto, é recomendável que essa estratégia inclua diretrizes relacionadas à seleção dos dirigentes/lideranças, à capacidade burocrática, aos formatos organizacionais variados, bem como a definitiva introdução da inovação na agenda prioritária do governo.
O primeiro desafio envolve a seleção dos cargos de primeiro e segundo escalão, ou seja, ministros, presidentes de estatais, secretários de Estado, etc. Embora estudos recentes sobre o Executivo demonstrem que os ocupantes desses postos, majoritariamente, agregam capacidades políticas e também expertise técnica nas áreas de atuação, alguns gargalos ainda demandam ajustes. A busca por governabilidade no Legislativo não pode ser o único motor dessas nomeações, é preciso incluir mais membros da sociedade civil, sobretudo, diante da persistente baixa representatividade social do nosso Parlamento. Aliado a isso, essas nomeações reproduzem também históricas assimetrias do nosso país, haja vista que as mulheres, negros e nordestinos tendem a ser sub-representados. Se a tendência mundial nas organizações é a diversidade como valor, a administração pública brasileira está na contramão.
A burocracia, entendida como o corpo funcional permanente do Estado, é outra dimensão que demanda atenção. A eficiência e qualidade nas entregas públicas pressupõem servidores públicos comprometidos, satisfeitos e, principalmente, capacitados para o desempenho de suas funções. Nesse sentido, é fundamental uma política de gestão de pessoas no setor público que mantenha processos seletivos meritocráticos e transparentes, mas também avance em processos de avaliação de desempenho que valorize o servidor que se capacita e apresenta melhores resultados. Problemas relacionados às enormes disparidades remuneratórias entre as carreiras, ausência de critérios claros para ocupação de cargos comissionados, bem como a estabilidade funcional, praticamente irrestrita, precisam ser discutidos. Essa última, por exemplo, não pode ser uma prerrogativa imutável, dado seus notórios efeitos colaterais, como comodismo e insulamento burocrático. Romper com a mediocridade e o corporativismo são tarefas difíceis, no entanto necessárias, não apenas para aperfeiçoar o desempenho da burocracia mas, principalmente, para legitimar sua atuação.
A terceira dimensão envolve o debate sobre o papel e as formas de atuação das organizações estatais. Desde a Constituição Federal de 1988, as estruturas e responsabilidades se transformaram em consonância com as diferentes macro-funções do Estado brasileiro e suas mudanças sociais, econômicas e administrativas. Imaginar que a solução para a melhoria se resume em retomar processos de privatização é uma visão míope e limitada dessa realidade complexa e dinâmica. Sem dúvida, os desafios contemporâneos demandam que as respostas burocráticas e exclusivas do setor público sejam repensadas. O caminho, no entanto, pressupõe uma ampla discussão sobre quais atividades e como devem ser transferidos à iniciativa privada, às parcerias público-privado ou com a sociedade civil e, principalmente, construir novos formatos organizacionais que incorporem mais flexibilidade e accountability aos agentes públicos, por exemplo, em processos de seleção de funcionários, contratação e aquisições.
Outros aspectos que recorrentemente vem sendo questionados envolvem o empoderamento das instituições de controle burocrático, e.g., ministério público, tribunais de contas e controladorias, e a judicialização das políticas públicas. Se por um lado, esses processos trouxeram avanços no combate à corrupção e efetivação dos direitos e garantias sociais, por outro, também provocaram e continuam provocando barreiras e dificuldades para o aperfeiçoamento da gestão pública. Nesse contexto, o desenvolvimento de arranjos democráticos de governança pública, que equilibre a autonomia e responsabilização dos agentes públicos, exige a construção de uma diálogo contínuo entre esses atores, para aperfeiçoar a coordenação e cooperação nas atividades de auditoria e avaliação das políticas do Poder Executivo. A criação de fóruns permanentes de diálogo e alinhamento de interpretações sobre normas e sistemas, inclusive com representantes da sociedade civil, e a criação de câmaras de arbitragem para resolução de dúvidas e questões entre gestores e controladores não sanadas nesses fóruns são duas alternativas que podem promover a melhoria da qualidade tanto do controle, quanto da gestão.
Finalmente, a última dimensão dessa abrangente estratégia de ação na gestão consiste na incorporação definitiva da inovação na agenda prioritária do setor público. O tema é considerado um dos conceitos mágicos da administração, ou seja, carrega tanto juízo de valor e positividade que pouco se avançou na sua operacionalização. Por isso, a busca incessante de práticas inovadoras nas organizações públicas necessita que ultrapasse a rasa esfera do discurso. O desenvolvimento, de fato, da cultura de inovação na máquina pública demanda investimentos em espaços de criatividade (laboratórios, escritórios, equipes de inovação, etc.), fomento ao constante experimentação (prática de tentativa e erro), incentivos e prêmios, política de capacitação em métodos inovadores (design thinking, métodos ágeis, gamificação, behavioral insights, entre outros). Assim, é possível vislumbrar, de fato, o setor público brasileiro acompanhando essa tendência, já disseminada nas nações mais desenvolvidas, que tende a contribuir para aperfeiçoamentos nos processos e serviços governamentais.
Indubitavelmente, esses desafios não são nada simples. Durante os processos eleitorais, normalmente, a temática de gestão é coadjuvante, o que, em boa medida, também se mantém no decorrer dos mandatos. Porém, os avanços em termos de indicadores socioeconômicos das últimas décadas estão muito mais relacionados às melhorias no campo da gestão pública do que propriamente da economia, especialmente, porque crescemos pouco e, em média, abaixo dos padrões internacionais no período. Logo, uma boa alternativa é apostar na construção de uma estratégia para a gestão pública, de forma dialogada com a sociedade, os servidores públicos e demais Poderes, que incorpore as tendências mais atuais da administração pública. E ainda, principalmente, reconheça os problemas, dilemas e desafios do setor público brasileiro. O não enfrentamento dessas questões a partir de em uma política deliberada tende a levar o próximo governo a recorrer a propostas generalistas sob discurso de panaceia que, ao fim ao cabo, pode provocar mais perda de legitimidade e confiança nas instituições públicas por parte da população.
Fonte: Estadão/Pedro Cavalcante, Doutor em Ciência Política e Professor de Pós-graduação da UnB, Enap e Idp.