A notícia de que o novo governo criará um ministério dedicado à gestão pública é alvissareira. Nos últimos anos, a política de gestão pública foi relegada ao espaço de uma secretaria dentro de um ministério da área econômica e esta posição reduziu sua relevância e abrangência, relegando-a a papel secundário diante de urgências econômicas e orçamentárias.
A equipe de transição para o novo governo constatou o que inúmeros estudos já apontavam: a administração pública federal e diversas políticas públicas foram desmontadas. O desmonte ocorreu sobretudo por meio da desconstrução das capacidades administrativas para planejar e executar políticas e do assédio a servidores públicos. Os concursos foram praticamente suspensos desde 2016, ampliando carências de força de trabalho e obrigando parte das organizações federais a funcionar na base de recrutamentos temporários e consultores externos por prazo determinado, comprometendo o conhecimento e a experiência acumuladas e, assim, a qualidade e a continuidade das políticas públicas. A reforma administrativa proposta pelo governo Bolsonaro (PEC 32/20202) compartilhou as premissas da agenda de desmonte do Estado. Sob uma empobrecida perspectiva fiscalista e privatista, a proposta enviada ao Congresso tinha como principal objetivo cortar despesas por meio da demissão de pessoal, da terceirização e da precarização das relações de trabalho e extinção de órgãos públicos.
Desta maneira, os assuntos relativos a pessoal, cargos, carreiras, concursos, alocação da força de trabalho, modelos organizacionais, processos de implementação e outros têm sido tratados, por sucessivos governos, como problemas e nunca como oportunidades de aperfeiçoamento institucional. Por outro lado, no novo governo a gestão pública pode assumir centralidade pela necessidade urgente de enfrentar este desmonte e avançar em melhores arranjos institucionais de políticas públicas.
Como ponto de partida, os dados oficiais disponíveis contradizem o alardeado argumento do “inchaço da máquina pública” e do descontrole de gastos com pessoal no governo federal. Os servidores civis ativos do Poder Executivo Federal representaram em 2022 um percentual menor da população economicamente ativa (5,3%) do que o valor de 20 anos atrás (5,8%). Do mesmo modo, a despesa com a folha de pagamentos desses servidores foi de 2,4% do PIB em 2020 (ou 18,9% da receita federal primária disponível), menor que os 2,6% em 2002 (ou 16,3% da mesma receita). Em suma, nas últimas duas décadas o número de servidores ativos sofreu redução quantitativa em relação ao total de ocupados no mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que a despesa com a folha de salários reduziu-se em termos de sua participação do PIB. Mesmo em relação à receita disponível, que é uma variável instável e vinculada ao ciclo econômico, verificou-se estabilidade dos gastos com pessoal ocupado no setor público brasileiro.
Mesmo assim, há que se enfrentar problemas notórios, tais como o corporativismo de algumas carreiras da elite burocrática e as graves disparidades salariais, ou a existência de um número excessivo de carreiras, cargos e funções ainda dispersas e desconectadas dos desafios institucionais do presente. Assim, resgatar a racionalidade da burocracia, alinhar incentivos e dar condições para seu melhor desempenho é uma tarefa urgente e necessária para responder aos anseios e a demanda da população por maior oferta e melhor qualidade de serviços públicos.
Portanto, é necessária uma nova agenda na área de gestão pública. Diferentemente das propostas fiscalistas ou privatistas, para um governo que tenha como objetivos promover o crescimento da economia e o bem-estar social, reduzir a pobreza, atenuar desigualdades e garantir a sustentabilidade ambiental, o propósito da nova agenda deve ser o de revigorar o serviço público e fortalecer as capacidades das organizações do Poder Executivo Federal para formular e implementar políticas e, assim, garantir a entrega de bens e serviços aos cidadãos. Evidências acumuladas por pesquisas empíricas apontam que a qualidade dos servidores e das organizações públicas é condição necessária para o êxito do Estado em alcançar os complexos objetivos do desenvolvimento, inclusive prevenindo a corrupção, preservando a estabilidade política e conquistando a adesão da população aos princípios e práticas republicanas e ao regime democrático.
Nesse espírito e para colaborar com uma agenda renovada de políticas para a gestão pública, o grupo de especialistas signatários deste artigo publicou um documento para ampla discussão no qual se elencam recomendações sobre temas considerados prementes. As recomendações incluem propostas para aprimorar o sistema de recrutamento, a estrutura de carreiras, os critérios que embasam as remunerações, bem como meios de mitigar desigualdades salariais, de raça e gênero. Incluem, ainda, sugestões para aprimorar a seleção dos nomes para cargos em comissão, os formatos organizacionais da administração pública, as parcerias com organizações da sociedade civil, as compras públicas e a relação entre a gestão e os sistemas de fiscalização e controle. O documento, publicado conjuntamente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o instituto República.org, expande o diagnóstico de questões estruturais que caracterizam a administração pública federal e apresenta um roteiro de propostas para aperfeiçoar a qualidade do serviço público a partir de uma gestão voltada à cidadania.
Sabe-se que o desempenho do Estado depende da ação coerente e coordenada das diversas organizações públicas, das relações da burocracia com a sociedade civil, de liderança política e de apoio social. O tamanho das mudanças necessárias está à altura da proposta de se construir um espaço institucional próprio para conduzi-las. É nesse sentido que recebemos com otimismo a notícia de criação de uma pasta específica para tratar dessas questões. Operacionalizar essa agenda de forma sistêmica, sinalizando um compromisso do governo com o fortalecimento do Estado e o aumento de suas capacidades políticas, burocráticas e organizacionais para implementar com eficiência e eficácia o programa de governo vitorioso nas urnas, é um passo necessário para consolidar a democracia no país.
Contudo, para o êxito de uma agenda importante como a que apontamos acima, o perfil da futura ministra ou ministro da nova pasta deve estar comprometido com objetivos progressistas, ser vocacionado ao serviço público e ter expertise para mobilizar os recursos necessários. A articulação desses recursos e competências poderá fazer com que o Estado de um país democrático e em desenvolvimento como o Brasil tenha as condições necessárias para cumprir os mandamentos da Constituição de 1988, vale dizer: construir uma sociedade livre, justa e solidária, sem discriminações de origem, raça ou sexo; garantir o desenvolvimento nacional; e erradicar a pobreza e as desigualdades sociais e regionais.
Governos de países desenvolvidos e com democracias consolidadas se beneficiam de um Estado equipado e com capacidades administrativas e servidores dotados de espírito público para implementar suas políticas. Essa lição não deveria ser desperdiçada por um governo recém-eleito e com um presidente que sempre inicia o mandato com grande capital político para colocar em movimento suas orientações estratégicas e o seu plano de governo.
Fonte: Estadão /Alexandre Gomide,Alketa Peci,Felix Lopez,Francisco Gaetani,Gabriela Lotta e José Celso Cardoso Jr.