Desta vez ,o alvo de nossa análise é a Itália, na visão do especialista, Henrique Savonitti Miranda, advogado ,especialista em licitações públicas e doutorando em Direito Administrativo pela Università di Udine (Itália).
Quais as diferenças mais significativas entre o Código de Contratos Públicos italiano e a nossa Lei de Licitações e Contratos?
Savonitti: Inicialmente, é importante salientar que o Código de Contratos Públicos italiano foi promulgado no ano passado (2016) e a Lei de Licitações do Brasil é de 1993. Só aí temos um intervalo de 23 anos entre ambas, o que dificulta muito a análise comparativa, e faz com que a lei brasileira esteja extremamente defasada em relação ao modelo europeu (que inspira o PLS nº 559/2013).
Apesar das inúmeras atualizações que foram realizadas ao longo dos anos, a Lei Geral de Licitações brasileira não contempla inúmeros institutos que surgiram neste período (embora a maioria deles já esteja presente em outras normas brasileiras, como é o caso do RDC). Do ponto de vista estrutural, creio que a principal diferença seja que a lei brasileira está muito preocupada com a licitação e pouco atenta ao contrato, ao passo que a norma italiana se preocupa muito mais com o contrato e menos com a licitação. Nesse sentido, a lei italiana (Código de Contratos Públicos), como o próprio nome já deixa antever, está realmente focada na contratação e disciplina a licitação de maneira bem mais flexível (denominada de “procedimento de escolha do contratado”). A lei brasileira, ao contrário, pormenoriza muito a licitação e não disciplina questões importantes que envolvem o contrato administrativo, como, por exemplo, o procedimento de gestão e fiscalização dos contratos, que vem disciplinado de maneira muito superficial no art. 67 da lei.
Pensando na futura lei de licitações brasileira, creio que seja possível afirmar-se que existe um certo consenso na doutrina de que o procedimento licitatório precisa ser flexibilizado em relação ao modelo atual. O curioso é que, ao mesmo tempo em que se defende uma flexibilização do procedimento de contratação, muitos aplaudem quando é editada uma nova instrução normativa que pormenoriza ainda mais uma norma anterior, que, por sua vez, já era extremamente detalhista.
Deixando de lado a flagrante ilegalidade desse tipo de prática (que ultrapassa, em muito, o exercício regular do poder normativo), o questionamento que se põe é o seguinte: nós estamos realmente preparados para uma mudança de paradigma?
Qual o papel da Autoridade Nacional Anticorrupção (ANAC) nas contratações públicas realizadas na Itália?
Savonitti: A Autoridade Nacional Anticorrupção (ANAC) surgiu em 2012, a partir da transformação da então Comissão Independente para a Avaliação, Transparência e Integridade das Administrações Públicas (CIVIT). Em 2014, a ANAC incorporou a Autoridade de Supervisão em Contratos de Obras Públicas, Serviços e Suprimentos (AVCP), que foi extinta.
A principal função da ANAC é prevenir a corrupção na Administração Pública italiana, incluindo as empresas estatais.
Ocorre que o novo Código de Contratos Públicos ampliou consideravelmente a competência da ANAC em matéria de contratações públicas, conferindo-lhe um papel central na aplicação da nova legislação.
Isso porque o novo Código abandona a ideia de regulamentação por meio de decretos e confere à ANAC a prerrogativa de estabelecer um conjunto de orientações normativas (denominadas “linee guida”) com o objetivo de dar aplicabilidade às disposições do novo Código.
Estas normas, de caráter geral e abstrato, devem oferecer indicações interpretativas e operacionais com o objetivo de simplificar e padronizar os procedimentos de contratação, conferir transparência e eficiência às ações administrativas, ampliar a competitividade, garantir segurança aos contratados e reduzir os litígios.
A questão que se põe atualmente é que esse sistema de “soft regulation”, praticamente desconhecido no direito italiano, cria uma série de incertezas quanto à natureza e à própria força jurídica dos atos emitidos pela ANAC, à legitimidade destas diretrizes no sistema de fontes do ordenamento jurídico, bem como em relação às regras procedimentais e processuais a elas aplicáveis.
Além desta peculiar competência normativa, a ANAC também elabora modelos de editais e de contratos, emite pareceres de caráter vinculante, e dispõe de uma ampla competência disciplinar, que inclui atividades de fiscalização e controle, inclusive com a prerrogativa de garantir a economicidade das contratações públicas e de apurar eventuais prejuízos ao erário.
É importante salientar que uma entidade como a ANAC não encontra semelhança nos outros países da União Europeia.
Há semelhança entre as funções desempenhadas pelos órgãos jurídicos na Itália e no Brasil no processo licitatório, tais como a obrigatoriedade de emissão de parecer?
Savonitti: No direito administrativo italiano não existe a obrigatoriedade de emissão de um parecer jurídico precedendo a publicação dos editais de licitações.
A única situação de parecer técnico-jurídico que me vem em mente diz respeito à celebração de acordos entre a Administração Pública e a empresa contratada nos casos de eventuais violações a direitos subjetivos. Nestas situações, já na fase de execução do contrato, quando o valor da transação for superior a 100 mil euros (ou 200 mil, no caso de obras públicas), será necessária a emissão prévia de um parecer do representante legal da entidade ou da Procuradoria do Estado. É o único caso de parecer jurídico.
Quais os principais mecanismos que asseguram a transparência do processo de contratações públicas na Itália?
Savonitti: As últimas diretivas da UE apresentaram uma grande evolução no tema da transparência. Todos os atos de autoridades e entidades licitantes relacionados à programação de obras, serviços e fornecimentos, bem como os procedimentos de adjudicação dos contratos administrativos, concursos públicos, concursos de ideias e concessões, que não sejam classificados como sigilosos, devem ser publicados e atualizados na seção “Administração Transparente” da entidade licitante.
Na Itália, estas informações também devem ser disponibilizadas no site do Ministério da Infraestrutura e dos Transportes e, na plataforma digital criada pela ANAC (Autoridade Nacional Anticorrupção) Também são publicadas eventuais decisões relativas à inabilitação e desclassificação de licitantes, os resultados das avaliações subjetivas, da qualificação técnica e da qualificação econômico-financeira das empresas, assim como as modificações contratuais e os relatórios de execução financeira.
No direito italiano, as entidades que pretendam realizar uma licitação, após se qualificarem, deverão se credenciar perante a ANAC, com base em um critério de “idoneidade/capacidade”, e terão competência para conduzir os certames que estiverem relacionados à sua capacitação técnica. Além disso, também devem ser publicados os nomes e currículos profissionais das pessoas que poderão participar das comissões de licitação em cada área (obras, serviços e fornecimento, por exemplo). Os membros das comissões de licitação serão sorteados a partir dessas informações. As entidades também poderão se qualificar para conduzir licitações de órgãos e entidades que não tenham sido credenciadas.
Quais as inovações mais importantes que as regras italianas sobre contratações públicas promoveram nos últimos tempos e quais aprimoramentos, poderíamos discutir com base no modelo da Itália?
Savonitti: Penso que nas respostas dadas acima já encontramos boas iniciativas que também poderiam ser adotadas no direito brasileiro (como é o caso, por exemplo, de se refletir sobre a necessidade de emissão de parecer jurídico em todas as contratações e de um aprimoramento das normas sobre transparência, inclusive no que diz respeito aos membros das comissões de licitações).
Além dessas reflexões, vale a pena mencionar que muitos países da União Europeia, inclusive a Itália, têm adotado normas prevendo uma revisão e simplificação dos ordenamentos nacionais, a fim de eliminar regras excessivamente restritivas. Conforme também já mencionamos, penso que esta ideia de simplificação da legislação (denominada proibição de “gold plating”) mostra-se essencial no atual cenário brasileiro. Neste sentido, estou seguro de que a redução da corrupção não passa por um aumento da burocracia, mas sim pelo aprimoramento dos mecanismos de transparência.
Um outro aspecto interessante diz respeito à percepção de que o número excessivo de hipóteses de contratação direta (incluindo as denominadas contratações “in house”) ofende o direito à livre circulação e à livre iniciativa. Penso que isso possa servir de inspiração para uma reflexão sobre a quantidade de hipóteses de contratação direta presentes no direito brasileiro, bem como para que comecemos a pensar em normas sobre contratações públicas no âmbito do Mercosul.
Também merece destaque, a questão das licitações sustentáveis. Na Itália, a atual normativa substituiu o critério de “menor preço” pelo critério de “proposta, economicamente mais vantajosa”, prevendo uma ponderação entre o preço e os critérios ambientais (semelhante ao que ocorre na licitação de técnica e preço, do direito brasileiro), fazendo com que a adjudicação seja realizada com base na melhor equação qualidade/preço, a partir de parâmetros objetivos e matemáticos de avaliação. É uma forma de se legitimar definitivamente os critérios de sustentabilidade ambiental e de se oferecer parâmetros concretos de julgamento.
Isso tudo sem falar em diálogo competitivo, acordos-quadro, critérios de premiação (e não só de punição) para as empresas contratadas, fundo de incentivos para as atividades de projetação, e muitas outras questões que precisam urgentemente ser debatidas, antes que se perca a oportunidade de se realizar uma verdadeira reforma no regime de contratações públicas brasileiro.
Editamos com exclusividade para os leitores do IN CLUB, a entrevista concedida pelo especialista Henrique Savonitti Miranda ao procurador federal, Daniel Picolo Catelli.
Henrique Savonitti Miranda é Advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil (desde 1999), na Ordem dos Advogados Portugueses (desde 2016) e na Ordem dos Advogados de Udine, Itália (desde 2016).
Doutorando em Direito Administrativo pela Università di Udine (Itália) e pela Université de Toulon (França). Mestre em Direito Administrativo (Master di II Livello in Organizzazione, management, innovazione nelle Pubbliche Amministrazioni) pela Università La Sapienza, de Roma (Itália), sempre estudando licitações e contratações públicas. Mestre em Direito Empresarial pela Universidade de Franca. Especialista em Direito Tributário pelo IBET/PUC-SP e IBDT/USP.
Integra o grupo de pesquisadores do Programa Galileu 2016-2017 (Progetto Galileo/ PHC Galilée) financiado com recursos da Universidade Ítalo-francesa, que reúne participantes das Universidades de Udine, Trieste, Milão e Toulon, entre outras.
Membro do Centre de Droit et de Politique Comparés Jean-Claude Escarras – CDPC.
Professor e colaborador da Enap desde 2004.
Daniel Picolo Catelli atualmente é Procurador Federal – AGU/PGF lotado na Escola Nacional de Administração Pública-Enap, com especialização em Direito Processual. Tem experiência na área de contencioso (especialmente junto aos Tribunais Superiores e orientação judicial) e em consultoria (legislação de pessoal, licitações e elaboração de atos de normativos). Foi professor em cursos de pós-graduação em Brasília, participou como instrutor em cursos de formação de Procuradores Federais (Escola da AGU e CESPE/Unb), além de integrar a banca examinadora do concurso de Procurador
Federal.