A revolução digital já transformou, e de forma radical, como se vive, como se trabalha, como se negocia e, agora, como se governa – porque é o que ainda continua mais em modo analógico. Políticas públicas e práticas governamentais precisarão ser (re)ajustadas a esse novo normal. Não é mais a simplória tarefa de informar as coisas e contas do governo na internet. Serviços públicos, da organização interna ou prestados à comunidade, estão a migrar, de forma irreversível e rápida, do mundo físico para o digital. A tecnologia corre muito mais na frente das leis, e as mudanças em nossas vidas pessoais e no setor privado ocorrem em ritmo muito mais rápido do que as do setor público.
Pelo caráter inovador e disruptivo dessas transformações, é natural que se observem descompassos, entre alguns países e governos, seus órgãos e os serviços que prestam. Não há um padrão ou um roteiro único para a transformação digital dos governos. Não foi ainda formulado um grande e consensual arcabouço teórico para dar base ou estabelecer um modelo ideal ou ótimo de organização e estruturação de um governo na era digital.
Muito mais do que a presença do governo no mundo digital, e mais que se tornar esse um governo eletrônico, é preciso escalar para um conceito maior: o de governança pública digital. Isto significa que não basta apenas modernizar e digitalizar um governo, que, no caso brasileiro, abrange um conjunto de governos, considerados os três níveis federativos.
No campo conceitual, vale adotar uma ideia mais abrangente de governança pública que não constitui expressão comum para os brasileiros, nem mesmo no âmbito dos especialistas em administração pública e ciência política.
A denominação começou a ser usada quase que exclusivamente no âmbito empresarial, tendo ganhado recentemente mais impulso por conta das estratégias ESG (Environmental, Social and Governance) – com as atenções ao ambiente, ao social e à governança, na tradução do acrônimo. Este conceito de governança, no entanto, é de outra e maior dimensão, de modo a abranger mais do que apenas os elementos que compõem a administração pública, mas alcançar também as instituições de Estado, a começar por leis e regulamentos.
Ainda no campo conceitual, cabe destacar que ainda que o termo “digital” e suas inúmeras variantes façam parte da vida cotidiana há pelo menos cerca de quatro décadas atualmente, estes carecem de uma definição consensual, assumindo significados distintos a depender do contexto. Não cabe neste texto fazer grandes considerações acerca da terminologia mais adequada, importa apenas reconhecer que não se trata da simples digitalização de informações, mas sim de um processo mais abrangente de transformação digital, no sentido do emprego estratégico de recursos e capacidades em prol de mudanças paradigmáticas de processos, operações, cultura e mentalidade, em um contexto de adoção de tecnologias digitais – como definem os autores Cheng Gong e Vincent Ribiere.
A abrangência dessa mudança pode ser ilustrada pensando em uma situação hipotética, como por exemplo: um cidadão precisa renovar uma certificação junto a um órgão público, mediante a atualização de informações cadastrais e apresentação de documentação, entrevista e assinatura do novo certificado. Supondo que esse processo se dá atualmente de forma presencial em um local específico, podemos fazer o exercício de pensar como este se daria em um contexto de transformação digital.
Nesse cenário, a transformação digital não se limitaria à simples disponibilização na internet da relação de documentos necessários e da ficha cadastral escaneada para impressão e preenchimento prévio, ou mesmo da habilitação do preenchimento online da ficha e a submissão da documentação em formato digital para o agendamento eletrônico para entrevista e assinatura. A transformação digital pode ser pensada numa situação em que o uso de big data e inteligência artificial, permita que, ao se aproximar da data da renovação da certificação, o órgão público verifique, mediante o cruzamento de bases de dados diversas, se as informações cadastrais da documentação se encontram devidamente atualizadas, avisando ao cidadão em caso de pendência ou então marcando automaticamente uma entrevista por vídeo, quando ao final será possível assinar digitalmente o novo certificado por meio de uma chave eletrônica pessoal.
É possível resumir a dimensão da oportunidade que se abre para melhorar a governança pública na federação brasileira no pós-covid citando os resultados de pesquisa da ONU sobre governo eletrônico em 193 países: em 2020, o Brasil era o quarto com mais internautas no mundo, mas aparecia em 54º lugar no índice de governo digital, ainda que seja o 20º do ranking na oferta de serviços online. Resultado similar é encontrado na análise comparativa de dados do Going Digital Toolkit, da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). O Brasil, quando comparado com as médias, se encontra abaixo em praticamente todos os indicadores. O fraco desempenho do país em todas as dimensões de análise deve servir como um sinal de alerta e um indicativo de que não faltam áreas de ação para melhorar nosso desempenho, e muito. Ao mesmo tempo, isso aponta oportunidades imensas para melhorar a eficiência e a produtividade na prestação de serviços públicos e concomitante redução de despesas.
O país até adota uma estratégia de governo digital – decreto nº 10.332, de 29 de abril de 2020 – mas formulada somente para a administração pública federal que, lembrando, responde por apenas metade da despesa primária do governo geral brasileiro, e, quando isolada a compra de bens e serviços, os governos subnacionais são ainda mais franca e crescentemente majoritários. Eles respondem pela maior parte dos serviços públicos básicos (como educação, saúde, segurança pública, serviços urbanos), bem assim como eles lideram a contratação de equipamentos e a realização de obras públicas. Fica claro que é necessário abranger tais governos nessa estratégia, ampliar objetos e objetivos, dar consistência às ações entre os diferentes níveis e unidades de governo, de modo a se ter uma completa e autêntica estratégia de governança pública nacional no Brasil.
A mudança poderia tratar e contemplar, simultaneamente, três grandes objetos ou conceitos: a governança pública, a digitalização do governo e a federação bem descentralizada.
É preciso reconhecer que a transformação digital não constitui uma opção política propriamente dita. Aos governos não é conferida a opção de participar ou não do (novo) mundo digital, de modo que a capacidade de adaptação condiciona sua própria sobrevivência. É um tremendo desafio adotar uma governança digital em um país de dimensões continentais, com profunda heterogeneidade regional, com regime de governo democrático e, sobretudo, organizado na forma de uma federação, caracterizada pela grande autonomia, de direito e de fato, dos governos subnacionais (estaduais e municipais). Uma visão nacional é imprescindível para a transformação digital. Essa é uma lição clara e inequívoca das experiências internacionais e das reflexões teóricas do assunto mais recentes.
Não apenas melhorar a eficiência para quem recebe como a produtividade para o governo que a preste, a transformação digital radical, consistente e coordenada de todos os governos brasileiros pode ser o mais importante instrumento para reformar sua administração e, sobretudo, para realizar um profundo ajuste das despesas e das contas públicas no país. Se, por um lado, as novas tecnologias podem representar uma ameaça à forma tradicional de gestão fiscal, são também uma oportunidade, ao permitirem uma melhor cobrança de impostos, facilitar o combate a evasão, tornando as despesas públicas mais eficientes e eficazes e permitindo uma maior transparência, uma melhor gestão da dívida pública, uma gestão mais fácil para o contribuinte e a melhoria dos processos internos e do intercâmbio de informações.
Fonte: Nexo Jornal / José Roberto Afonso e Bernardo Motta Monteiro