Há décadas existem discussões sobre a necessidade de uma reforma tributária no Brasil, mas, apesar disso, todas as propostas falharam em obter aprovação política no âmbito nacional ao longo dos anos.
Não por outro motivo, em pleno 2023, estamos diante de um contexto jurídico-político bastante raro: a reforma aprovada pela Câmara dos Deputados , além de superar o quórum mínimo consensual necessário à aprovação parlamentar, inaugura uma nova dinâmica tributária para brasileiros e investidores estrangeiros.
Trata-se de uma reestruturação que modifica essencialmente o racional normativo aplicado aos contribuintes: a ideia central é unificar os principais tributos que incidem sobre o consumo, tendo em vista o destravamento do crescimento econômico e o melhoramento do ambiente de negócios do país.
Maior simplicidade, justiça fiscal, eficiência e transparência são algumas das promessas reiteradamente sustentadas pelos defensores da reforma. Entretanto, chama muita atenção — no texto admitido — o tempo de transição e completude que será estabelecido entre o atual e o futuro regime de tributos.
Como regra geral, as vigências do Imposto Sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) terão início no ano de 2026, de modo que o primeiro substituirá o ICMS e o ISS, cabendo à segunda suceder o PIS, a Cofins e o IPI.
Se engana, porém, quem pensa que a transição estará absolutamente concluída em até três anos: na verdade, prevê-se que a sua conclusão se dê por completo apenas em 2078. Isto é, teremos um período transitório de aproximadamente 50 anos, em que o país conviverá – pelo menos em alguma medida – com a presença de normas do antigo e do novo regime.
A conjuntura revela um palco montado com a tempestade perfeita para uma série de debates, que irão contemplar inúmeras áreas do Direito e, consequentemente, as contratações públicas não estarão de fora dessas disputas.
Aliás, nem poderiam: em termos de cadeia econômica, apenas no primeiro trimestre de 2023, o setor movimentou cerca de R$ 33,4 bilhões – valor homologado em compras pelo governo federal.
Sobre a reforma propriamente dita, inexistem dúvidas de que modificações serão implementadas pelo Senado – algo a ocorrer, provavelmente, apenas no segundo semestre legislativo. Contudo, uma certeza é possível sustentar até o momento: a Nova Lei de Licitações e Contratos nos antecipa algumas contribuições à temática do equilíbrio econômico-financeiro das contratações administrativas em cenários de incertezas fiscais.
Duas são as principais.
A primeira, prevista em seu artigo 134, garante em caso de criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos, a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato – seja para mais ou para menos – em relação aos valores contratados.
Não estamos diante de uma novidade legal: redação muito semelhante existe na “antiga” (e ainda vigente) Lei de Licitações. Ainda assim, nos parece que a sua manutenção, em termos práticos, é relevante e necessita ser rememorada no atual contexto fiscal brasileiro.
Sabe-se que, em um passado não tão distante, prosperaram decisões do Tribunal de Contas da União contrariando a expressa previsão legal comentada. Nos referimos à denegação do cabimento a pleitos revisionais de preços, em casos envolvendo contratos públicos afetados pela criação de tributos não existentes quando da apresentação das propostas vencedoras – especificamente, o IPMF, a CPMF e a Cofins.
A título ilustrativo, cabe citar o Acórdão 45/1999-Plenário e o Acórdão 1.742/2003-Plenário, ambos exemplos jurisprudenciais do TCU, cujos indeferimentos se deram sob o pretexto de que não restaram demonstradas, após a criação dos tributos, situações de onerosidade excessiva (insuportável ou relevante) aos contratados – pressuposto que, por sua vez, nunca foi exigido pela lei.
Por isso, talvez, que a nova Lei de Licitações tenha implementado um incremento relevante, ao estabelecer reforço voltado ao racional da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos em seu capítulo dirigido à alocação de riscos.
Subscrevendo novidade em relação à lei anterior, o artigo 103, § 5º, inciso II, determina que, independentemente das condições do contrato e da matriz de alocação de riscos, o aumento ou a redução dos tributos diretamente pagos pelo contratado ensejará direito ao reequilíbrio contratual – quando tais alterações decorrerem de lei superveniente.
Com feito, tais disposições normativas corroboram o entendimento constitucional de que, aos contratados, deve ser garantido o direito à manutenção das condições efetivas das propostas apresentadas ao Estado.
Diante dos próximos cenários de incertezas fiscais – próprios da complexidade vivenciada, diga-se –, caberá ao Poder Legislativo, à Administração e aos tribunais pátrios zelarem pelo equilíbrio econômico-financeiro das contratações públicas.
Ignorar essa premissa é, em última instância, aniquilar qualquer chance de êxito em relação ao alcance dos objetivos da reforma tributária. O motivo é óbvio e largamente conhecido: ainda que se implemente um sistema mais moderno e atrativo aos contribuintes e investidores, não há crescimento econômico que resista aos efeitos concretos de um país inseguro juridicamente.
Fonte: Jota.info/Pedro Lucena